O Brasil assinou uma declaração conjunta com os Estados Unidos afirmando não haver na Organização Mundial do Comércio – OMC, uma entidade central na governança global, espaço para modelos econômicos diferentes da economia de mercado, criticando países que utilizam políticas e práticas que criam condições de competição desleais, impedem o desenvolvimento e uso de tecnologias inovadoras e minam o funcionamento do comércio internacional
Segundo a declaração, o princípio da Economia de Mercado tem de valer para todos os 164 membros da OMC, para garantir condições de competição econômica saudável no comércio internacional. Embora a declaração não tenha citado especificamente quem não estaria seguindo corretamente os princípios do livre mercado, ficou muito claro que ela tinha um alvo: A China.
Os representantes chineses no Conselho Geral da OMC afirmaram que a OMC não seria o fórum adequado para discutir o que é economia de mercado, sem colocar, entretanto, onde e quando esse debate poderia ser feito. E se estariam dispostos a fazê-lo.
Vários países entre os mais ricos e industrializados, como os 27 da União Europeia , Japão, Coréia do Sul, Noruega, Taiwan. Austrália, Canadá e Suíça, apoiaram o conteúdo do posicionamento brasileiro e americano, de que economia de mercado é um princípio fundamental para a reforma da OMC. A Índia, um país que tem um histórico de rivalidades com a China, foi mais ambíguo, colocando que quem dúvidas deveria procurar o Tribunal de Apelação.
A OMC no contexto da disputa EUA x China
O Tribunal de Apelação da OMC se encontra inoperante, impedindo que a entidade tenha qualquer influência prática na resolução de conflitos comerciais entre os países membros. A razão disso foi justamente os EUA não terem indicado os juízes para esse tribunal, quando dentro de sua reação ao desafio chinês pela liderança mundial, optaram por esvaziar não somente a OMC, mas outras instâncias de negociação multilateral internacional,
A própria Parceria Transpacífica, um acordo comercial que reunia Brunei, Chile, Nova Zelândia, Singapura, Austrália, Canadá, Japão, Vietnã, Malásia, México Peru e os próprios Estados Unidos poderia ter sido uma maneira de conter as práticas antimercado da China. Mas, direcionados por uma política que despreza o multilateralismo, os EUA optaram por se retirar do acordo em 2017.
Os Estados Unidos voltarem a incluir a OMC em seu discurso poderia ser positivo, caso sinalizasse que estariam abandonando a postura unilateralista dos últimos anos e voltando a acreditar nas instituições multilaterais para a resolução de conflitos comerciais. Mas, pelo que deu a entender até agora, trata-se somente de mais uma arena onde foi levada a disputa EUA x China pela liderança global. A conferir.
O que é uma economia de mercado
Em teoria, os critérios para definir o que é uma economia de mercado são relativamente simples: É quando não existe a interferência de um poder centralizador de informações e decisões e planejador, no caso, o Estado, para se definir variáveis como:
- Determinação de preços
- Custos
- Regras de investimento
- Alocação de capital
- Financiamentos
- Divisão do trabalho
O oposto disso seria uma economia em que o Estado centraliza todas as decisões e interfere em cada uma dessas variáveis em prol de um resultado geral que se acredita melhor.
Obviamente esses são os modelos teóricos. Da mesma maneira que não existem na prática economias totalmente livres de alguma regulação ou interferência do Estado, mesmo entre aquelas tidas como as mais liberais do mundo, todas as tentativas de implantar um modelo de Estado centralizador das decisões resultaram em indiscutíveis fracassos, que tiveram um custo muito alto para as populações dos países envolvidos.
Afinal, a China é uma economia de mercado?
Até que ponto , e quando, o Estado pode interferir na economia de um país e este continuar a ser uma economia de mercado é algo que os economistas discutem desde sempre e não chegaram, ou chegarão, a um consenso, porque a Economia lida com números, mas nem sempre é uma ciência exata.
Sob esse pressuposto, se a China é ou não uma economia de mercado, poder-se-ia argumentar que com certeza não, já que existem acusações de que Pequim atua para favorecer as empresas chinesas com práticas desleais na competição externa, como dumping, subsídios diretos e dificultando ou impedindo o acesso de competidores estrangeiros ao seu enorme mercado interno.
Por outro lado, é inegável que a China fez progressos no caminho de assumir características de uma economia de mercado, como por exemplo, ter implementado uma legislação de proteção à propriedade intelectual. E que seriam passos dados de maneira cautelosa e segura, para que uma economia que 50 anos atrás tinha características socialistas se mova para um modelo diferente. Qual será esse modelo é mais uma das grandes perguntas do século XXI.
Se formos analisar a questão usando uma lente mais ampla, não se pode esquecer que países que apoiaram o conteúdo da declaração, como os da Europa, e os próprios EUA, subsidiam pesadamente sua agricultura. E que um dos maiores prejudicados é justamente o Brasil, que tem a agricultura mais competitiva do mundo em muitos produtos.
Mas, analisando ainda por um outro ângulo a questão nós, brasileiros, sabemos que precisamos diminuir o chamado custo Brasil e investir muito em tecnologia, educação e capacitação de nossa mão de obra, para sermos mais competitivos nos mercados mundiais de produtos manufaturados. Mas enquanto isso não acontecer, esse será o motivo (ou pretexto?) para também termos uma economia mais fechada.
Em resumo, o arcabouço teórico do que é uma economia de mercado é simples. Mas sua aplicação para analisar a realidade é um tanto mais complexa.
A única certeza que se pode ter é reafirmar que a melhor maneira de resolver controvérsias é a negociação. E com os seus problemas e vantagens, organismos multilaterais como a OMC são fóruns adequados para isso. E nenhum país enriqueceu, ou melhorou a vida de sua população no longo prazo se fechando para o comércio.
Os riscos envolvidos na posição brasileira na OMC.
A última vez em que o Brasil tocou nessa questão foi em 2004, durante a visita à China do então presidente Lula que declarou na época que a China era uma economia de mercado. Mas desde então, não se avançou nessa discussão em matéria de qualquer tipo de posicionamento do governo brasileiro.
O que mudou desde 2004 não foi somente o posicionamento ideológico do governo brasileiro, embora devamos sempre reiterar que os interesses do país devem estar acima da ideologia do governo de turno. O contexto atual é da disputa cada vez mais aberta entre a China, que se coloca como candidata séria ao posto de maior potência econômica, científica, militar e política do mundo e o atual dono dessa posição, os Estados Unidos.
O desafio chinês à posição americana está longe de ser uma novidade. Já tinha se colocado pelo menos desde 2008, quando a crise do subprime atingiu a economia americana e colocou em evidência a China como locomotiva econômica do mundo. E estudiosos de História e Economia já colocam sua provável ascensão e um declínio relativo da posição americana como uma possibilidade.
Para entender o que significa declínio relativo, devemos entender o conceito colocado pelo historiador britânico Paul Kennedy no brilhante Ascensão e Queda das Grandes Potências. Não significa que os Estados Unidos se tornarão menos ricos e desenvolvidos cientificamente, ou poderosos militarmente. Significa que outro país poderá rivalizar com eles nesse sentido, e na capacidade de projetar esse poder para além de suas fronteiras.
O que é diferente no contexto atual é a maneira que os Estados Unidos têm reagido a essa situação. Ao contrário de administrações anteriores, que procuraram uma coexistência mais tranquila com a China, a atual tem apostado em uma retórica mais agressiva e em ações contra empresas chinesas, como a Huwaei , e até empresas e fundos de investimento americanos que investem na China.
Nesse contexto, de qual lado o Brasil deveria se posicionar? A resposta é do lado do Brasil, das empresas e dos empregos brasileiros, tomando cuidado com as posições favoráveis aos EUA, ou a qualquer outro país, sem receber as contrapartidas devidas. A China é o principal parceiro comercial do Brasil, com os chineses absorvendo quase 40% do mercado internacional do agronegócio brasileiro e em culturas específicas, como a da soja 72% das exportações brasileiras.
A disputa China Vs. EUA é uma luta entre dois contendores peso-pesado no campo científico, militar e econômico, onde o Brasil, apesar de ser uma das 10 maiores economias do mundo, é no máximo um peso médio. Como observou muito bem o vice-presidente da República, General Hamilton Mourão, o Brasil precisa saber jogar o jogo.