Em 24 de fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia, quebrando um paradigma de quase 80 anos de Paz na Europa, no que se refere a um país invadir outro com o objetivo de anexar territórios. Quando o conflito havia completado um mês, escrevemos esse artigo com nossas previsões sobre as consequências para a economia, o comércio e a política internacionais.
Passados 12 meses do início do conflito, analisamos agora quais das nossas previsões foram certeiras, e quais não foram, pois adivinhar o futuro continua sendo uma arte tão ingrata quanto sempre foi. Mas o certo é que a invasão da Ucrânia, que completou1 ano, mudou as relações internacionais
A Economia da Rússia não entrou em colapso
Imediatamente após a invasão da Ucrânia, foram impostas sanções econômicas duríssimas contra a Rússia. O efeito que isso traria era incerto, porque sanções econômicas semelhantes aplicadas contra países com economias bem menores, apesar de terem causado dificuldades no dia a dia de suas populações, não fizeram com que os governos desses países mudassem os cursos de ação que motivaram tais sanções.
Obviamente, houve algum efeito, com a saída em massa de diversas empresas do país, da norte-americana Mcdonalds à francesa Renault, mas a economia da Rússia não entrou em colapso. Aliás, dadas as circunstâncias, pode-se dizer que a Rússia está “muito bem, obrigado”., continuando firme no mercado internacional, vendendo petróleo para China, Índia, e países do Oriente Médio. E mantendo todas as demais transações comerciais e financeiras com eles.
A Europa não entrou em uma espiral inflacionária descontrolada por causa dos preços da energia.
Com relação à inflação na Europa, o maior problema no continente nesse momento é o desemprego, embora a pressão inflacionária persistam, há uma acomodação dos preços, com o gás antes fornecido pela Rússia sendo suprido pelo fornecimento do Qatar e dos Estados Unidos.
A Rússia não conseguiu usar a ameaça do corte no fornecimento de gás como recurso militar.
Ao contrário do que se temia, o inverno na Europa não foi tão rigoroso, fazendo com que não somente não houvesse um aumento do consumo, e consequentemente, dos preços, pressionando a inflação, como a ameaça de corte do fornecimento não serviu como poder de dissuasão da Rússia contra os países da Europa Ocidental.
A Ucrânia ofereceu uma resistência maior do que qualquer um esperava. Inclusive Vladimir Putin.
Acreditamos que, quando decidiu pela invasão, Vladimir Putin esperava uma conquista sem dar um único tiro, como ocorreu com a anexação da Criméia em 2014, ou, no máximo, uma guerra que não passaria de duas semanas, com a Ucrânia tendo de aceitar todas as condições impostas a ela, restando ao resto do mundo protestar formalmente, mas aceitar o fato consumado.
O que surpreendeu Vladimir Putin, e muita gente ao redor do mundo, dado o tamanho e nível de tecnologia do arsenal russo, e também de seu exército, que tem a reputação de não brincar em serviço, foi a capacidade de resistência da Ucrânia. E, não podemos deixar de reconhecer, da liderança de Volodymyr Zelensky.
Quem é Volodymyr Zelensky
Volodymyr Zelensky, um ex-comediante que ganhou fama na TV foi alçado ao poder como consequência de uma onda de protestos que, em 2014, reuniu em um mesmo contexto uma profunda descrença com os políticos tradicionais da Ucrânia, e um dos dilemas nacionais que o país sempre teve antes da invasão, de se aproximar mais da Rússia ou da Europa Ocidental, já que sempre existiu, de fato, uma parte da população ucraniana com afinidades com a Rússia.
Nessa agitação política e social, que derrubou o então presidente pró-Rússia, Viktor Ianukovytch, foram eleitas também outras celebridades ucranianas, como por exemplo Vitali Klitschko, ex-campeão mundial de Boxe na categoria peso-pesado, prefeito da capital, Kiev, desde 2014, e que tem se comportado dignamente desde que a crise começou, pelo menos, de acordo com as notícias que chegam até nós.
Antipolíticos são um fenômeno já antigo, e até corriqueiro, em todas as democracias do mundo. Os norte-americanos, por exemplo, tem a figura do outsider. Mas é muito raro que celebridades utilizando sua fama para chegar à cargos políticos sejam capazes de entregar o que seus eleitores, muitas vezes pessoas descontentes, querendo protestar contra o famigerado “sistema”, esperam delas.
Então, não podemos deixar de comentar que é surpreendente a maneira como Volodymyr Zelensky conseguiu não somente inspirar sua população e seu exército a lutar, como trazer para o seu lado aliados de peso, como os Estados Unidos, os países da Europa Oriental e da Europa Ocidental, boa parte deles membros da OTAN, a Aliança do Tratado do Atlântico Norte, que hoje recuperou boa parte, senão toda, a relevância que tinha na época da Guerra Fria.
Mas, vale lembrar que os Estados Unidos e os países da Europa tem seus motivos para apoiar a Ucrânia com armas, munições e todo o tipo de recurso, como têm feito. Assim como tem evitado entrar no conflito diretamente, repetindo a lógica das guerras por procuração que aconteciam na época da Guerra Fria, como as ocorridas na Coreia, Vietnã e Afeganistão, tendo Estados Unidos de um lado e a então União Soviética do outro.
Da mesma maneira, os aliados da Rússia, especialmente a China, tem seus motivos para agir dessa maneira, como trataremos a seguir.
Porque a Guerra na Ucrânia é importante para a Europa
A invasão da Ucrânia trouxe para o cenário europeu situações que não eram vistas desde a Segunda Guerra Mundial, de países invadindo outros para conquistar territórios, e temores da época da Guerra Fria, de exércitos marchando a partir de Moscou em direção ao Ocidente. Esse temor é ainda mais forte em países como a Estônia, Letônia, Lituânia e Polônia, que já fizeram parte do império soviético, formalmente ou com governos fantoches.
Para esses países, e mesmo para a Alemanha, maior economia da Europa, não interessa uma crise humanitária ainda maior, com ainda mais refugiados fugindo da Ucrânia. Ou pior, que a aventura saia barata para a Rússia, a ponto de Vladimir Putin achar que vale a pena repeti-la, o que faria de qualquer país do Leste Europeu, especialmente as antigas repúblicas soviéticas, alvos.
Então, a Ucrânia dificilmente receberá armamento capaz de atingir profundamente o território russo, como por exemplo, a capital, Moscou, porque isso escalaria o conflito inimaginavelmente. Mas pode-se dar como certo que receberá todo o auxílio que precisar para causar o maior desgaste possível às forças russas e consequentemente, à sua economia e tecido social. Mesmo que isso encompride o conflito indefinidamente.
Porque a Guerra na Ucrânia é importante para a Rússia.
As afinidades culturais e étnicas entre russos e ucranianos foram o pretexto utilizado, para, supostamente, Vladimir Putin restaurar o prestígio mundial que a Rússia tinha no período do Império Soviético.
Passado um ano do início do conflito, que não tem um fim visível no horizonte, Não seria exagero afirmar que, nesse contexto, os objetivos de Vladimir Putin a essa altura sejam mais modestos, como uma “não derrota” que possa chamar de vitória. Se antes da guerra a Rússia já não era uma democracia propriamente dita, mas também não era uma ditadura escancarada, é razoável afirmar que as coisas mudaram.
A Rússia foi reorganizada em torno da guerra e da hostilidade em relação à Otan, a população se revoltou contra a possibilidade do alistamento militar forçado e muitos de seus cidadãos mais bem-educados saíram do país, minando suas perspectivas econômicas de longo prazo, já que a ajuda chinesa não será eterna. Nada disso, entretanto, passa perto de colocar a permanência no poder de Putin, pelo menos, por enquanto.
Putin, tido como um líder hábil, um enxadrista político, terá muitos problemas internos se a guerra se prolongar indefinidamente, e ele não tiver ao menos o discurso de uma vitória para apresentar perante seu público interno. O quanto esses problemas seriam capazes de desestabilizar sua posição, é algo que não temos como avaliar, ou prever.
Porque a Guerra na Ucrânia é importante para a China
Do ponto de vista da política mundial, não é exagero afirmar que os dois verdadeiros protagonistas da guerra sejam a China e os Estados Unidos, e no xadrez político mundial, Moscou seja uma coadjuvante de Pequim.
Quando começamos a escrever nossos artigos, em 2019, era perfeitamente razoável falar que não fazia sentido analisar a China de uma perspectiva de Guerra Fria, pois o gigante asiático estaria mais interessado em exportar mercadorias do que ideologias e a convivência entre os países que são democráticos, e os que não são, era uma espécie de cooperação em que ambos os lados ganhavam.
Hoje, não somente a China estaria mais empenhada em sua disputa com os Estados Unidos pela liderança mundial, como alguns analistas, como os da The Economist, afirmam que Pequim estaria em busca de uma “validação” de seu sistema político perante o mundo.
É uma análise que faz sentido, e que pode se concretizar em fatos. Ou não. A única certeza que se tem é que para a China a questão internacional mais relevante se chama Taiwan, e que do ponto de vista de Pequim, e talvez até do cidadão chinês médio, é uma província rebelde, e faz sentido retomá-la pela força, se necessário.
Os esforços dos Estados Unidos e de seus aliados para defender a Ucrânia são uma boa medida da resistência que forças chinesas iriam encontrar. E eventuais esforços de Pequim para diminuir essa união, já seriam vislumbres de uma Guerra Fria do Século XXI entre as duas maiores economias do mundo.
Porque a Guerra na Ucrânia é importante para os Estados Unidos
Para os Estados Unidos, confirmando nossas previsões, a Guerra na Ucrânia é uma oportunidade de retomar o protagonismo global que vem diminuindo desde a crise de 2008 e o fracasso na Guerra do Afeganistão, período em que, desde então, o peso político e econômico proporcional da China vêm crescendo, e o poder e influência dos Estados Unidos, diminuindo.
A invasão da Ucrânia de certa maneira, zerou o placar nesse sentido, colocando os Estados Unidos mais do que nunca em uma posição de protagonismo, embora isso tenha seu preço, porque Washington precisa demonstrar o quanto está disposta a defender tanto Taiwan em um hipotético conflito contra a China, quanto seus aliados europeus.
O que esperar da Ucrânia em relação à guerra
Seria de uma incrível obviedade afirmar que o maior interessado no desfecho rápido desse conflito seja a Ucrânia, porque o conflito acontece lá. Com as grandes perdas humanas e materiais que está tendo, é razoável questionar porque os ucranianos não negociam uma paz que encerre o conflito, já que, apesar de todo o apoio recebido de outros países, quem sem dúvida paga o maior preço é o povo ucraniano.
A questão vai muito além de seu direito de a Ucrânia se considerar mais europeia ou russófila, mesmo lembrando que nesse momento, uma posição pró Rússia dificilmente seria bem vista dentro da Ucrânia, mas do quanto Kiev teria de ceder para a Moscou para encerrar o conflito.
Nesse momento, apesar das dificuldades, Vladimir Putin não aceitaria menos do que o necessário para se declarar vitorioso no conflito, o que provavelmente incluiria porções consideráveis do território da Ucrânia . E, dependendo do que a Rússia exigir, como os territórios onde estão os principais portos ucranianos no Mar Negro, poderia significar a inviabilização econômica da Ucrânia no futuro.
Para os ucranianos não resta outra alternativa, exceto continuar lutando.
A posição do Brasil em relação à guerra entre Rússia e Ucrânia
Já havíamos colocado no passado recente que as relações com a China, nosso maior parceiro comercial, exigiriam habilidade. Hoje, o mesmo vale para as relações com os Estados Unidos, nosso segundo maior parceiro comercial, e até com a Rússia, com quem o volume de comércio não é tão grande, mas não temos interesse em antagonizar, independentemente de termos ou não conseguido outros fornecedores para os fertilizantes tão importantes para o agronegócio.
Do ponto de vista exclusivo do agronegócio, até se poderia afirmar que os embarque mais lentos de milho e trigo da Ucrânia, devido às inspeções rigorosas dos russos, que já causaram uma queda de 29% dos embarques ucranianos de milho e trigo seriam uma oportunidade para qualquer produtor e exportador agrícola, inclusive o Brasil. Mas a situação é bem mais complexa, e seria de uma incrível miopia analisar a situação sob esse ponto de vista.
O presidente dos EUA, Joe Biden, já pressionou, de maneira mais ou menos velada, reconheçamos, por um posicionamento brasileiro pró Ucrânia. A Alemanha, por sua vez, foi mais longe, pois frente a recusa brasileira de enviar munições para a Ucrânia, vetou a exportação de 29 blindados Guarani fabricados pela IVECO no Brasil, mas que contém peças alemãs, para as Filipinas.
Sempre consideramos e afirmamos que o Brasil, que tem uma tradição histórica de neutralidade, deve buscar defender os interesses do Brasil. E, nesse ponto, faz sentido a estratégia brasileira, encabeçada pelo Presidente Lula, de se propor a mediar negociações de paz entre Rússia e Ucrânia, pois, na pior das hipóteses, saímos da posição de um país pressionado a se posicionar para a de uma com algum protagonismo.
A questão é: Qual a probabilidade dessa, ou de qualquer outra proposta de mediação de um acordo de paz, ou mesmo um armistício, prosperar?
Quais as chances de negociações de paz entre Rússia e Ucrânia chegarem a um acordo.
O presidente Lula é um político hábil, tem uma imagem positiva no exterior e interlocução tanto com Zelensky quanto com Putin. Talvez mais com esse último. E talvez até pudesse ir mais longe do que a proposta de mediação feita pela China recentemente, que não foi aceita tanto pela Ucrânia quanto pelos países da OTAN, desconfiados quanto à aproximação política entre Pequim e Moscou.
A questão é que, para que negociações prosperem é preciso que ambos os lados estejam dispostos a entregar algo que possuem em troca de algo que desejam. E não vemos, conforme as posições em que se encontram Ucrânia, Rússia e seus respectivos aliados, essas condições nesse momento.