A Era da Globalização Econômica terminou? Qual o futuro da integração comercial mundial que permitiu a ascensão da China à condição de potência econômica e do Brasil à de grande fornecedor de alimentos, assim como deslocou a balança econômica mundial para a Ásia, permitindo o enriquecimento de países tão diferentes entre si como Índia, Vietnã e Malásia?
Quem colocasse tal questão, ou simplesmente cogitasse a possibilidade de reversão da globalização econômica até o início de 2020 seria automaticamente colocado dentro do gueto ideológico dos defensores do protecionismo e de teorias econômicas superadas. Ou, simplesmente, não seria levado à sério.
Mas, após a eclosão da pandemia de Covid-19, em 2020, e a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, não somente as cadeias logísticas que sustentavam a globalização econômica colapsaram, como a própria lógica que a orienta foi colocada em xeque.
Brevíssima história da globalização econômica
Para muitos historiadores, conceitualmente, a globalização econômica começou nas Grandes Navegações, quando as viagens de Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral e Fernão de Magalhães, permitiram que países europeus, inicialmente Portugal e Espanha, e depois Reino Unido, Holanda e França, ligassem economicamente a Europa à Ásia, África, e à recém-descoberta América.
Mas, a globalização econômica, da maneira que a conhecíamos, e durou até 2020, começou na prática no início da década de 1990, com a queda do Muro de Berlim, que levou ao fim da União Soviética, e consequentemente, ao fim do que se conhecia como o bloco socialista, nos moldes em que isso era entendido durante a Guerra Fria.
Apesar de a queda da União Soviética não ter garantido que todos os antigos países socialistas se tornassem democracias, ele parecia confirmar a superioridade das economias de mercado sobre outras formas de organização, e as vantagens do livre comércio entre os países, fazendo com que, independentemente da sua situação política, qualquer país pudesse participar da globalização econômica.
Qualquer empresa poderia não somente vender para qualquer país do mundo, como poderia comprar, também de qualquer país, produtos melhores, e mais baratos. Quanto mais complexo e tecnologicamente desenvolvido fosse um bem de consumo, de um automóvel norte-americano a um smartphone sul-coreano, maior seria a probabilidade de encontrar peças e componentes vindos de vários países do mundo.
A Era de Ouro da Globalização
No que talvez os historiadores venham a chamar de Era de Ouro da Globalização Econômica, ao mesmo tempo em que empresas instalavam suas fábricas onde os custos eram mais baixos, inclusive os trabalhistas, investidores podiam aplicar seu capital onde os juros eram mais altos. E era uma aspiração dos governos de vários países do mundo, não necessariamente concretizada, oferecer o mesmo tratamento a empresas nacionais e estrangeiras.
Do ponto de vista político, governos de democracias fechavam acordos com diversos países, fossem eles também democracias, ou não, dando origem a cadeias de valor incrivelmente sofisticadas que responderiam por praticamente metade de todo o comércio mundial. A Globalização Econômica manteve os preços baixos para os consumidores do mundo inteiro e ajudou a tirar 1 bilhão de pessoas da pobreza nos países emergentes , sendo que alguns deles, como China e Índia, passaram a ter mercados de classe média formados por centenas de milhões de pessoas.
A Globalização Econômica sob ataque – Versão 1.0
Apesar de seus benefícios, a Globalização Econômica nunca foi uma unanimidade. Ela também gerou seus grupos de descontentes.
Entre os críticos ferozes da globalização estão trabalhadores da indústria ou serviços nos países desenvolvidos que perderam empregos, ou padrão de vida, pela concorrência da mão de obra mais barata dos países emergentes, inclusive quando ela emigra para os países desenvolvidos, a agricultores que temem a concorrência de países com agronegócios mais competitivos, e pressionam governos por medidas protecionistas.
Esses grupos, tão diversos entre si, compartilham um sentimento antiglobalização um tanto difuso, que nos momentos de crise econômica, teve grandes reflexos na política de países importantes, como Estados Unidos e Reino Unido. Alguns atribuem a esse sentimento q eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos e o resultado do referendo que decidiu a retirada do Reino Unido da União Europeia, o Brexit, ambos ocorridos em 2016.
Mas se o sentimento antiglobalização foi capaz de causar verdadeiros terremotos na política, as ondas de choque tinham um efeito muito menor na economia, porque tanto as empresas como dos consumidores estavam confortáveis no mundo globalizado, e era isso que orientava suas tomadas de decisão, mesmo no contexto da Guerra Comercial entre Estados Unidos e China, o fato mais relevante em termos de comércio internacional pré-pandemia.
Isso explica porque a campanha feita por Donald Trump para que a Apple deixasse de fabricar seu icônico Iphone na China para fazer isso nos Estados Unidos não surtiu resultado. Independentemente de quais fossem os sentimentos dos consumidores americanos pela perda de empregos nos EUA, ou pela própria China, eles não estavam dispostos a pagar mais por um Iphone made in USA.
Da mesma maneira, empresas japonesas não aceitaram a proposta do governo do Japão, que incluía gordos subsídios, para que fechassem suas fábricas na China, e as levassem de volta ao Japão. Na visão dos executivos japoneses, Independentemente dos problemas políticos entre Pequim e Tóquio, não fazia sentido abrir mão da presença um mercado gigantesco de 400 milhões de consumidores de classe média.
A Globalização Econômica sob ataque – Versão 2.0
No exato momento em que escrevemos esse artigo, algumas das principais empresas do mundo realocam suas plantas industriais em processos de renacionalização ou regionalização continental, enquanto governos erguem barreiras tarifárias e proíbem a exportação de alimentos. E fazem isso sem nenhum tipo de constrangimento, sem tentar justificar o protecionismo sob o pretexto de causas nobres, o que era relativamente comum.
O que mudou, nesse caso, foi a lógica da globalização econômica, que foca mais na segurança do que no baixo custo, ou maior eficiência na produção. Mas essa mudança de paradigma não aconteceu do dia para a noite. Ela é resultado das circunstâncias que se colocam desde 2020, como:
Lockdown na China – O país é responsável por 19% do PIB mundial. Por isso, os sucessivos lockdowns no gigante asiático, em função da COVID-19 preocupam pelo efeito que podem ter no crescimento econômico mundial, já que afetam diretamente tanto a disponibilidade dos produtos que a China exporta quanto a demanda por aqueles que ela importa. Inclusive do Brasil.
Diversificação de fornecedores para diluição de riscos – Esse não é o primeiro lockdown na China. O mundo ainda se lembra que a primeira cidade chinesa “fechada” por causa da Covid-19 foi Wuhan, local que, além de ser onde a doença se manifestou pela primeira vez, concentrava 90% da produção mundial de respiradores, um item considerado estratégico durante os primeiros meses da pandemia, e cuja escassez mundial acentuou a tragédia.
A lógica que levou a essa concentração da produção de respiradores em uma única cidade chinesa foi a que orientou todo o processo de globalização econômica que descrevemos. Por ser um produto de ticket baixo, para os padrões da indústria de equipamentos médicos, ela foi alocada onde era mais barato. E quando uma eventualidade atingiu esse lugar, causou uma escassez mundial de um equipamento que naquele momento era de alta necessidade.
Caos Logístico – Os dois anos de pandemia desorganizaram completamente o sistema logístico mundial que sustentou a globalização até hoje. As cidades fechadas causaram um congestionamento de navios em vários portos do mundo, principalmente norte americanos e chineses, que está sendo prolongado pelos novos lockdowns na China. O resultado é escassez de mercadorias, com efeito inflacionário em todas as economias do mundo.
Guerra na Ucrânia – A invasão da Ucrânia pela Rússia talvez seja o grande fator que leve a um mundo menos globalizado. E a questão vai muito além de um acordo para resolver uma questão pontual de escassez de trigo, em que em troca da suspensão de algumas das sanções que enfrenta, a Rússia abriria corredores para os portos ucranianos que dominou, para permitir o escoamento de 20 milhões de toneladas de grãos estocados em silos na Ucrânia.
É bastante razoável supor que Moscou só se sentiu segura o suficiente para invadir a Ucrânia porque sabia que a Europa Ocidental, depois que as fontes de energia limpas e renováveis não se mostraram capazes de um fornecimento constante a preços razoáveis, havia se tornado ainda mais dependente do gás russo, que sessa situação, se tornou um instrumento de coerção da Rússia sobre a Europa Ocidental.
Hoje, a escassez de energia, e a incerteza sobre o fornecimento do gás russo significa energia a preços altos, instabilidade e incerteza econômica. Mas em dezembro, quando começar oficialmente o inverno, que naquela região do mundo tem temperaturas bem abaixo de zero, significa, literalmente, uma “arma congelante” de Vladimir Putin. Uma situação que poucos anos atrás, pareceria saída de uma história de ficção. Mas que, hoje, é verossímil.
Democracias e Autocracias.
As autocracias não deixaram de existir com a queda do Muro de Berlim, três décadas atrás. Mas a partir do momento em que não havia mais um antagonismo ideológico tão claro, houve uma espécie de convivência respeitosa, e mutuamente vantajosa, entre democracias e autocracias, com todos seguindo a mesma regra do jogo.
É inegável que durante três décadas, houve uma relação de ganho mútuo entre democracias e autocracias. Enquanto as primeiras encontraram lugares onde podiam produzir a preços baixos em quantidade suficiente para abastecer os principais mercados consumidores do mundo, as autocracias enriqueceram, melhorando o padrão de vida de suas populações e tornando-se elas mesmas, mercados consumidores relevantes.
Nos últimos 30 anos, esse arranjo pareceu funcionar. As ameaças que apareceram, como por exemplo, o terrorismo, e os conflitos que elas geraram, eram fruto de visões radicais de pequenos grupos violentos, muitas vezes espalhados em diversos países, não do choque de interesses de dois Estados soberanos. E quando elas apareciam, era comum que esses Estados, fossem eles democracias ou autocracias, se posicionassem do mesmo lado.
Os mais otimistas chegaram a imaginar que o destino das autocracias seria uma inevitável abertura política, visto que não somente suas populações tinham um padrão de vida cada vez melhor, como eram expostas a mensagens que exaltavam valores relacionados a liberdade e democracia, inclusive por parte da indústria cultural.
Tal abertura jamais aconteceu, e essa análise se mostrou o que se costuma chamar de wishfull thinking. Governos autocráticos se mostraram capazes de conviver com uma população cada vez mais rica, e com padrão de consumo cada vez mais alto. E vice-versa.
E os governos de autocracias e democracias , por uma questão de pragmatismo político e comercial, realpolitik, optaram por deixar que cada um cuidasse das próprias questões internas, com a eventual reação a “excessos”, inclusive por parte das democracias, que não são imunes a eles, é preciso lembrar , jamais saindo do campo retórico, e muitas vezes, meramente protocolar.
Como a invasão da Ucrânia vai mudar a regra do jogo no comércio internacional
Sabemos muito pouco sobre a maneira como as decisões, principalmente as mais graves, usando a invasão da Ucrânia como exemplo, são tomadas em uma autocracia. Se elas dependem de pessoas, ou grupos, no poder. Ou se existem instâncias, formais ou informais, que podem contrabalançar esse poder, como ocorre nas democracias, ou se casas legislativas e tribunais são apenas referendadores das decisões de uma autoridade máxima.
Os risco desse grau de imprevisibilidade provavelmente foram ignorados, ou minimizados, pelos países da Europa Ocidental quando aumentaram sua dependência do gás russo. Parecia irracional, ilógico, e por isso, improvável, que alguém desejasse arriscar uma relação comercial tão mutuamente benéfica em nome de um expansionismo territorial pela força, algo que parecia parte do passado, que não ocorria na Europa desde 1945.
Mas a experiência provou que os seres humanos podem tomar atitudes que fazem sentido dentro de um determinado conjunto de valores e situações, em que eles estão inseridos. Mas que vistas sob outro prisma, não parecem racionais, lógicas ou vantajosas. E que essas atitudes, especialmente se vindas de pessoas ou grupos à frente das decisões de Estado, sem contrapesos aos seu poder, podem ter consequências graves.
A posição da China
Feitas todas essas considerações, muitos países olham com preocupação para a China, que além de apoiar a Rússia no conflito com a Ucrânia, há algum tempo vem aumentando sua capacidade militar e se estranhando com os Estados Unidos. A preocupação mais imediata seria uma eventual invasão de Taiwan, que Pequim considera uma província rebelde, mas que está sob a proteção militar dos Estados Unidos.
Mas não são somente os taiwaneses que se sentem ameaçados pelo aumento da musculatura militar, e demonstrações de força da China.
Na última Cúpula da OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte, participaram países muito distantes do Oceano Atlântico, banhados pela Bacia do Pacífico, Japão, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Austrália, sendo que esse último já tinha sofrido devastadoras sanções comerciais por parte de Pequim por ter impedido a participação da Huawei na instalação da tecnologia 5G no país.
Os temores desses países seriam o de estarem em uma área geográfica que Pequim considerasse sua “zona de influência”, da mesma maneira que Moscou considera o Leste Europeu, inclusive a Ucrânia. Essa seria a razão pela qual os australianos teriam rompido seu acordo com a França e feito um com os Estados Unidos e o Reino Unido, para ter submarinos nucleares , ao invés de movidos a diesel, e aumentar sua capacidade de dissuasão.
O receio em relação à posição da China é que, apesar de fábricas terem deixado o país por causa do aumento do custo da mão de obra, e terem se instalado em países próximos, como o Vietnã, a China ainda é a grande fábrica do mundo. Sua pegada comercial é 7 vezes maior que a da Rússia, e o planeta depende da China parta ter uma imensa variedade de produtos, que vai de ingredientes farmacêuticos ativos até o lítio processado usado em baterias.
O uso dessa dependência como forma de coerção, da mesma maneira que a Rússia utiliza o gás natural, seria catastrófica para muitas economias. Muito mais do que simplesmente Pequim erguer barreiras que impedissem o acesso ao gigantesco mercado chinês.
A mudança das cadeias de valor do comércio internacional
Nesse contexto, é compreensível a mudança das cadeias de valor internacionais, com empresas priorizando a garantia do recebimento, em detrimento de simplesmente buscar preços mais baixos, e governos restringindo exportações, para garantir o fornecimento interno e até a segurança alimentar. Por isso, estão ocorrendo a renacionalização de empresas e a regionalização continental das cadeias de produção.
Descentralização da produção.
A ideia é não haver mais uma grande fábrica do mundo, que concentre a produção de itens que podem ser fundamentais, mas vários produtores, espalhados nos vários continentes , diluindo os riscos de escassez ao evitar que problemas em um único local como aconteceu com a falta de respiradores no lockdown em Wuhan, em 2020, afete cadeias de valor no mundo inteiro.
E vale destacar que o ocorrido em Wuhan foi um infortúnio que, até aquele momento, nem a imaginação mais fértil poderia prever. Como já falamos, busca-se evitar que a ameaça de corte de fornecimento de uma determinada mercadoria seja utilizada como elemento de coerção entre países que têm disputas entre si.
Diluição do risco logístico
Além de descentralizar a produção, busca-se ampliar as alternativas de transporte e diminuir a vulnerabilidade de linhas de suprimento, utilizando um jargão vindo do meio militar, assim como o próprio termo logística. O caos no transporte marítimo causado pela pandemia mostrou a vulnerabilidade de uma linha de suprimento de milhares de milhas marítimas, e que depende de portos desimpedidos para embarcar e desembarcar mercadorias.
Fazendo uma comparação, cadeias de valor localizadas dentro do mesmo país, ou continente, podem ter seus trajetos percorridos por ferrovia, rodovia ou navegação fluvial, ou de cabotagem, diluindo os riscos logísticos.
Os riscos da “desglobalização”.
Teoricamente, a reversão da globalização econômica, com as cadeias de valor sendo realocadas para dentro do mesmo país, ou do mesmo continente, em processos de renacionalização e regionalização continental, geraria grandes oportunidades para as empresas envolvidas e geraria empregos que teriam sido perdidos décadas atrás, quando as grandes marcas dos países desenvolvidos buscaram custos baixos em países como a China.
Mas não é tão simples assim. Existem riscos nessa “desglobalização”. Vantagens competitivas não se constroem do dia para a noite. Custos baixos não são conseguidos somente remunerando mal a mão-de-obra, acusação frequentemente feita à China, embora já não seja verdade há algum tempo. Existe a questão da competitividade pela eficiência que vão além do custo baixo. Vejamos alguns exemplos:
A Índia é um país extremamente competitivo em TI – Tecnologia da Informação, porque tem uma mão-de-obra não somente abundante, mas extremamente qualificada nessa área, resultado de décadas de investimento em capital humano. Décadas de investimento em educação também são a origem do sucesso da Coréia do Sul, país de origem de marcas mundiais de produtos de tecnologia, como Samsung , LG e Hyundai.
E o sucesso das marcas sul-coreanas, de qualquer indústria de produtos de tecnologia, dificilmente seria possível se não comprassem chips de Taiwan, já que a pequena ilha, por ter dominado a fabricação de semicondutores, é responsável pela produção de mais de 90% dos chips mais avançados.
Indo para a indústria de alimentos, Brasil e Estados Unidos são os maiores exportadores mundiais de soja. Isso se deve a ambos os países terem regiões com clima favorável, grandes extensões de terra, e no caso do Brasil, terem investido durante décadas em pesquisa científica para melhoramento do solo e das sementes, mérito que no Brasil pertence à Embrapa.
É possível tentar repetir experiências bem-sucedidas em um contexto de renacionalização ou regionalização continental, como é o caso da França e outros países europeus, que também plantam soja. Mas que tem um produto final 25% mais caro que o brasileiro e o americano, que só consegue permanecer no mercado às custas de um pesado subsídio governamental.
Protecionismo, inflação, atraso tecnológico e intervenção estatal.
Conseguir a “independência tecnológica” e “reindustrializar” é algo que soa como música para certas correntes do pensamento econômico, inclusive no Brasil. Se esse cenário se concretizar, talvez não haja alternativa, lembrando que em um cenário de atritos entre grandes potências, Estados Unidos e China, o lado que o Brasil deve assumir é o do Brasil, já que temos relações econômicas muito fortes com ambos os gigantes, e temos interesse em continuar tendo.
Mas também é preciso lembrar que o Brasil já passou pela experiência de ter uma economia fechada e setores que dependiam de protecionismo e subsídio estatal. O resultado foi um atraso tecnológico que, mais de 30 anos após o início da abertura da economia brasileira, ainda prejudica nossa competitividade.