Existe futuro para o Mercosul? Essa pergunta pode soar como uma provocação, ou uma avaliação pessimista a respeito das perspectivas para o bloco comercial sul-americano que reúne Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, tem mais de 30 anos de existência, mas ainda não cumpriu muitos objetivos a que se propunha.
Nesse artigo, vamos falar sobre problemas estruturais e circunstâncias internas e externas que diminuem o interesse dos países membros em investir no Mercosul, bem como sobre as oportunidades que poderão ser perdidas ao se ignorar o bloco, além de uma nova configuração conceitual, que poderia alinhar os interesses de todos os membros.
A atual situação do Mercosul
O Mercosul vem sofrendo reveses por questões não de comércio e integração, mas sim por divergências de posição ideológica e até de um certo raciocínio imediatista e seletivo, que apela ao espírito de união regional somente quando convém, ao qual se somam as consequências da pandemia da COVID-19 e, mais recentemente, à guerra entre Rússia e Ucrânia, que aprofundou a crise econômica na região.
Argentina e Paraguai x Uruguai, e Brasil neutro.
Um exemplo disso foi a última reunião de cúpula do conselho do mercado comum realizada no Paraguai nos dias 21 e 22 de julho, em que o Uruguai anunciou sua intenção de assinar, individualmente, um acordo de livre comércio com a China.
O Brasil não se opôs, vendo com bons olhos a flexibilização de acordos que considera limitantes, como fez, por exemplo, quando abandonou o acordo marítimo que tinha com Argentina e Uruguai, que impunha barreiras protecionistas à navegação de cabotagem no Cone Sul. Mas Argentina e Paraguai se opuseram, por razões diferentes.
O Paraguai apresentou oposição porque reconhece diplomaticamente Taiwan, e não a China. Não se pode deixar de apontar que a posição de Assunção tem o mérito da lealdade, por ser coerente com o que Paraguai historicamente defende. Mas também é necessário dizer que não é muito inoportuna, pois aproxima o Mercosul de um dos maiores vespeiros da atualidade, as tensões militares entre China e Taiwan, que envolvem também os EUA.
Mas o opositor mais inflamado à pretensão uruguaia foi Buenos Aires, o que do ponto de vista puramente pragmático e comercial, é compreensível quando analisamos que a Argentina tem exportações anuais para o Uruguai de USD 1,01 Bilhão, com destaque para produtos industrializados como medicamentos, que representam 9,74% desse volume de exportações. E não deseja a concorrência dos produtos chineses em seu mercado.
Curioso, entretanto, é o argumento da Buenos Aires de clamar pela união dos países do Mercosul, que não tem a virtude da coerência. Não somente porque a Argentina já tem uma parceria estratégica com a China, importando em 2021 mais do gigante asiático do que do Brasil, como também, quando achou conveniente, a Argentina deixou as negociações para formatar acordos comerciais do Mercosul, o que não é previsto pelas regras do Bloco.
De acordo com a decisão de no. 32/00 do conselho do mercado comum, um país membro não pode negociar acordos individualmente, só em bloco. Então, teoricamente, tal acordo poderia ser o fim do Mercosul. Mas o mais provável é chegar a algum tipo de arranjo que evite desfechos drásticos, típico de nossa “latinidade”, que funciona para o bem, para impedir erros irreversíveis, e para o mal, passando uma imagem de insegurança jurídica.
Entretanto, mesmo sendo conduzido desse maneira errática, que não é exatamente a da seriedade e previsibilidade, condição básica para atrair bons parceiros e investidores, o Mercosul assinou um excelente acordo com Cingapura, do qual trataremos em outro artigo. O ponto é: o que fazemos com o Mercosul?
O Mercosul deveria acabar?
Com os fatos narrados e a evidente, digamos, “falta de carinho” dos países membros pelo Mercosul, soa pertinente questionar: O Mercosul deveria acabar? Deveria ser pouco a pouco relegado à irrelevância, ou até formalmente extinto?
A resposta é não. De maneira alguma. Porque o mundo mudou nos últimos 2 anos. Desde 2020 ocorreram mudanças radicais, que vão do comportamento das pessoas e empresas, que estão trabalhando em casa, em regime de home office, até a lógica do comércio internacional, que encara a perspectiva de reversão da globalização econômica e da regionalização continental das cadeias de produção, o que cria oportunidades para o Mercosul.
Entretanto, o fato de haver oportunidades, que podem melhorar nossas relações comerciais com toda a América Latina, não significa que o Mercosul não precise de mudanças. Não somente de ser mais valorizado, mas talvez até para ser reimaginado, começando por abandonar sua pretensão de um dia se tornar uma versão do Mercado Comum Europeu no Cone Sul.
Semelhanças e diferenças entre o Mercosul e o Mercado Comum Europeu
O Mercosul surgiu em 1991, com a assinatura do Tratado de Assunção, para integrar economicamente Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai e ,futuramente, criar um Mercado Comum do Cone Sul, em uma clara inspiração na experiência bem-sucedida do Mercado Comum Europeu, que gerou a União Europeia que conhecemos hoje.
O Mercado Comum Europeu
O Mercado Comum Europeu integrou economicamente alguns dos países mais industrializados do planeta, como Alemanha, Bélgica, França, Itália e Holanda, logo após o fim da II Guerra Mundial, em que estavam arrasadas pelo conflito, precisando se restabelecer economicamente e principalmente, ter estabilidade política, para não se tornarem vítimas de novas formas de totalitarismo ou até da expansão da União Soviética naquele período.
A existência de um objetivo, e um medo, comuns, e de estarem em níveis de avanço similares em suas economias, trouxe o estímulo necessário aos europeus ocidentais para trabalharem em conjunto. E essa interdependência trouxe um inédito período de décadas de paz e prosperidade para a região.
Seria um exercício trabalhoso tentar levantar quantas vezes os países da Europa guerrearam entre si, mas só para se ter uma ideia do quanto a região era volátil, a França participou de 32 guerras entre 1.109 e 1815, quando Napoleão Bonaparte foi derrotado em Waterloo. E depois teve três confrontos importantes: a Guerra Franco-Prussiana, que acabou unificando a Alemanha, a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, justamente contra a Alemanha.
A união aduaneira foi o embrião de outras formas de aproximação, como a criação de uma entidade política, a União Europeia, e de uma moeda comum, o Euro. E quando países europeus mais pobres, como Portugal ou Grécia, se juntaram ao grupo, ganharam uma moeda forte, maior estabilidade econômica, e um maior poder de consumo. Inclusive para comprar produtos fabricados nos parceiros mais industrializados. Foi um bom negócio para todos.
O Mercosul
Existem, sim, algumas semelhanças entre o Mercosul e o Mercado Comum Europeu, no sentido de que sua criação é considerada o fim da rivalidade política entre Brasil e Argentina, que vinha desde o período colonial. Apesar de nunca ter gerado uma guerra teve momentos de grande acirramento, como na construção da Hidrelétrica de Itaipu, que alguns afirmavam na época que, se tivesse suas comportas abertas, deixaria Buenos Aires de baixo da água.
Mas as semelhanças terminam aí.
A grande dificuldade do Mercosul é que é formado por quatro países muito diferentes entre si, em relação ao tamanho territorial, populacional e econômico, com Brasil e Argentina sendo muito mais industrializados que Paraguai e Uruguai. Essas disparidades, por si só, já fazem com que eles tenham muitas diferenças de interesses, o que dificulta que eles enxerguem no Bloco um canal interessante para defender esses interesses.
Existe também o aspecto de que os países do Mercosul nunca tiveram um objetivo comum tão palpável, como era a estabilidade econômica como fator de estabilidade política, um seguro contra o surgimento de novas formas de totalitarismo, como funcionou na Europa dos anos 1950 e 1960. Muito menos enfrentam uma ameaça em comum com rosto, endereço, e um exército enorme e assustador, como era a União Soviética do pós-Guerra.
Diferenças ideológicas atrapalham o Mercosul.
É comum afirmar que diferenças ideológicas entre governos de turno dos países membros atrapalham o Mercosul. Mas é verdade também que isso acontece porque, por essa falta de “carinho” pelo bloco, muitas vezes ele é visto como um bode expiatório conveniente para questões políticas internas de cada país.
Porque investir no Mercosul
Com todas essas dificuldades, muita gente pode se perguntar: Por que investir no Mercosul? E a resposta á simples: Porque o mundo está mudando, e a globalização que conhecemos até 2020, parece estar com os dias contados.
Os fatos incontroláveis ocorridos desde a pandemia, como a crise dos respiradores em 2020, o caos logístico, a dependência europeia do gás natural russo e até a ameaça de invasão chinesa de Taiwan, que concentra 90% da produção mundial de semicondutores, fez com que se chegasse à conclusão de que os ganhos de produtividade não compensam mais os riscos de cadeias logísticas longas, vulneráveis a eventualidades e decisões de governos autocráticos.
As grandes empresas darão prioridade à montagem de cadeias logísticas mais curtas e seguras, em que as pontas estejam geograficamente próximas, e que, em caso de eventualidades, haja opções de transporte, que evitem a falta de mercadorias.
É isso que torna o Mercosul interessante, já que, mesmo que a infraestrutura de transporte que liga Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai seja precária, os modais rodoviário e de navegação de cabotagem já estão disponíveis, e a demanda poderia fomentar investimentos em modais como o ferroviário, para ser modernizado ou ampliado.
Mercosul poderia ser a OPEP dos Alimentos
Finalmente, surge a questão de como aumentar o interesse dos próprios membros do Mercosul no bloco. E onde todos tem a ganhar é justamente com o Agronegócio, em que Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai são competitivos por terem grandes extensões de terras férteis, e um grande excedente agrícola, de que o mundo vai precisar cada vez mais, para exportar.
Atuando juntos no mercado internacional, defendendo seus interesses conjuntamente, teriam mais a ganhar do que a perder.
Fica a dica para reflexão.